27 agosto 2009

As Armas do Amor

Desarmem
os campos minados da ignorância
onde se infiltra friamente
o preconceito, esse sim, fatal, letal, brutal
e não há senso que lhe valha
o preconceito desempalha
animais incongruentes
atacando pela trilha
de uma ilha outrora virgem
Aparência da virtude
O preconceito nunca falha
flecha certeira
na esteira
da inocência
aparência de virtude
E por mais que se escude
na justificação pseudo-ética
cosmética, caquética
do seu valor de guardião das morais
vitais pra lá do ano 2000
o preconceito não tem estado civil
é casado com a morte
divorciado da vida
é viúvo de si mesmo
é solteiro e por junto separado
suicida

Desarmem o preconceito!

Armem por favor as armas do amor
amor no sentido primeiro e secular
armem o mar
armem o vento p´ro uso depois
vão e regressem depois
mas por quem sois
mas por quem sois
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem por favor
as armas do amor

Desarmem
as metralhadoras côr-de-cinza
que defendem
a condescendência
cautelosa, lacrimosa
das decisões oficiais
carimbadas despachadas
e só por isso legais
mas que vão milhas atrás
das atrozes realidades
que o corpo grita
e a alma berra
A condescendência não desferra
No cofre forte onde se encerra
a planificação ponderada
de um problema complexo
há soluções de fachada
2 mil mortos perfilados na parada
há palestras sobre sexo
é um problema complexo
nosso dano se ninguém resolve nada
ano após ano
2 mil mortos perfilados na parada
1 por ano
nossa escada em caracol para o nirvana

Desarmem a condescendência!

Armem por favor as armas do amor
amor no sentido primeiro e secular
armem o mar
armem o vento p´ro uso depois
vão e regressem depois
mas por quem sois
mas por quem sois
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem por favor
as armas do amor

Desarmem
a pose altiva
emproada gargalhada
que veste a incompetência
incipiência
disfarçada de suma
sabedoria
quem diria
quem diria que debaixo de uma
só alegoria
tanto exemplo existiria
Exemplos de incompetência
são aos montes, são às serras
impossíveis de escalar
passos vãos, inúteis guerras
A incompetência é incapaz de se olhar
o cadáver inocente
é olhado pelo soldado incontinente
pelo menos é um olhar
a incompetência, nem pensar
nem pensar
em juntar o resultado à vontade
o sonhado
à realidade
e do real
partir para a utopia
menos mal
assim seria
menos mal

Desarmem a incompetência!

Armem por favor as armas do amor
amor no sentido primeiro secular
armem o mar
armem o vento p´ro uso depois
vão e regressem depois
mas por quem sois
mas por quem sois
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem por favor
as armas do amor

Desarmem
a boa consciência arrogante
altissonante, complacente
da intolerância religiosa
da intolerância civil
da intolerância, tanto faz
desdenhosa e incapaz
de intuir na diferença
a trave-mestra desta vida
sal da vida
A intolerância é uma água envenenada
rota em jorros mas dos gritos
só sai água silenciosa
a mais perigosa
engrossa rios, traz detritos
traz a caixa das esmolas
flutuando já tombada
penetra casas e escolas
leva livros
ditos sagrados
mas levados
mais à letra
que a própria letra
das suas margens
e assim pondo-se à margem
dos próprios rios sagrados

Desarmem a intolerância!

Armem por favor as armas do amor
amor no sentido primeiro e secular
armem o mar
armem o vento pro uso depois
vão e regressem depois
mas por quem sois
mas por quem sois
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem as armas do amor
armem por favor
as armas do amor

25 agosto 2009

Liberdade

Nos meus cadernos de estudante
Na escrivaninha e nas árvores
Na areia nevada
Escrevo o teu nome

Nas páginas lidas
Em todas as páginas brancas
Pedra sangue papel ou cinza
Escrevo o teu nome

Nas imagens douradas
Nas armas dos guerreiros
Na coroa dos reis
Escrevo o teu nome

Na selva e no deserto
Nos ninhos entre as giestas
No eco da minha infância
Escrevo o teu nome

Nos meus trapos de caloiro
No açude de sol bafiento
No lago de lua esperta
Escrevo o teu nome

Nos campos no horizonte
Nas asas dos passarinhos
No moinho tenebroso
Escrevo o teu nome

Em cada sopro da manhã
No mar e nos navios
Na insensata montanha
Escrevo o teu nome

Na espuma das nuvens
E nos suores da borrasca
Na chuva densa e insípida
Escrevo o teu nome

Nas formas cintilantes
Nas cores dos sinos
Na verdade física
Escrevo o teu nome

Nos caminhos conscientes
Nas estradas estendidas
Nas praças que trasbordam
Escrevo o teu nome

Na lâmpada que se acende
E naquela que se apaga
Nas minhas razões reunidas
Escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
Do espelho e do meu quarto
Na cama concha vazia
Escrevo o teu nome

No meu cão glutão e terno
De orelhas levantadas
Na sua pata desastrada
Escrevo o teu nome

No limiar da minha porta
Nos objectos familiares
No rolo de fogo sagrado
Escrevo o teu nome

Em toda carne acordada
Na testa dos meus amigos
Em cada mão que se estende
Escrevo o teu nome

Na janela de surpresas
E nos lábios comoventes
Mais longe que o silêncio
Escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
Nos meus faróis extintos
Nos muros do meu tédio
Escrevo o teu nome

Na vacuidade sem desejo
Na desnuda solidão
Nas escadas da morte
Escrevo o teu nome

Na saúde reencontrada
No risco extraviado
Na fé sem recordação
Escrevo o teu nome

E pelo poder duma palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Para te nomear.

Paul Eluard
in Poésies et vérités, 1942

19 agosto 2009

estrela da tarde

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

(Ary dos Santos)

sorrio

para mim. Passo a mão pelo meu ombro e digo: aqui me tens, aqui te tens. Sussuro-me ao ouvido: vais conseguir. tu és capaz. no meio disto tudo que criaste também vais ser capaz de ver o fim do novelo.
Olho mais uma vez para mim e suspiro. Penso: chegaste aqui tão depressa. nem dei por ti. nem dei por ter passado estes anos: 10, 20? e tu ainda assim, e tu ainda à procura do mesmo. Vais conseguir, digo-me. Não estás só, digo-me. Tens-te a mim.

17 agosto 2009

como

custa que os dias passem e este eco de nada na minha vontade.
Como custa estar aqui sem nada para oferecer.
Como custa falar e não ser ouvida.
Como custa ver-me morrer devagar, devagar.
Como custa tentar vir à superficie e respirar
Como custa esperar
Como custa esforçar-me por escutar
Como custa tentar
Como custa sorrir
Como custa desejar
como custa, quanto custa, ate quando?

12 agosto 2009

Palavras

Vi trigo vi fome
vi ferros vi feras
vi ruas vi nomes
vi grades vi esperas

vi armas vi muros
vi lutas vi mortes
vi surdos vi mudos
vi fracos vi fortes

vi mares vi terras
vi negros vi servos
vi fardas vi guerras
vi balas vi nervos

vi corpos vi cardos
vi fama vi glória
vi punhos vi cravos
vitória vitória

vi abril vi povo
vi rosto vi espanto
vi nosso vi novo
vi pouco vi tanto

tão cedo tão cedro
tão certo tão perto
tão raiva tão medo
tão mar tão deserto

tão lua tão leve
tão pobre tão pouco
tão fúria tão febre
tão longe tão louco

tão alto tão erva
tão raso tão resto
conversa conserva
tão lento tão lesto

tão urze tão hoje
tão zero tão tojo
tão fica tão foge
tão ontem tão nojo

tão mata tão morra
tão égua tão água
tão pinho tão porra
tão merda tão mágoa

Joaquim Pessoa in
125 poemas: antologia poética, p. 51-52

10 agosto 2009

os dias perfeitos

foram feitos de maresia. os dias perfeitos sabem a sal. ficam com areia no cabelo.

Nos dias perfeitos ouve-se música ao fundo que pensamos ser apenas para nós, a pele está macia, o cabelo acaricia os ombros.

Nos dias perfeitos há uma brisa que me abraça o corpo. Nos dias perfeitos não me sinto eu. Nos dias perfeitos há uma oliveira, e muita poeira. Nos dias perfeitos nem penso que são dias perfeitos....

09 agosto 2009

fases

as voltas que a vida dá faz com que muitas palavras fiquem por dizer. Não que não as sinta, não que nao as oiça na minha cabeça, mas dificilmente chegam à ponta dos dedos. Palavras que, muitas vezes, são só minhas e não podem nem devem ser partilhadas com outros. Mesmo que esses outros sejam aqueles que mais bem me querem. Por isso as palavras passaram como os dias. Formam dias, semanas e meses onde nada se escreve para os outros.
São fases da minha vida. Fases que não chegam aqui, fases rápidas, fases que são retomadas. São fases ou será que fazes?........