10 dezembro 2010

tanto mais


foste chegando devagar à minha vida. De repente já lá estavas. Já fazias falta quando não estavas. Já precisava de falar. De nada dizer. Só de saber que ali estavas. Uma amizade sem juízos de valor. Sem exigências. Sem recriminações. Uma amizade destas quer-se para a vida. Muitas gargalhadas, muitos sorrisos e algumas dores partilhadas. Que um amigo queremos perto. E a ti vou-te querer para sempre perto. Eternamente. Um amigo e tanto, mas tanto mais.

26 novembro 2010

Sentença


às vezes as palavras não se juntam. Não se encontram. Andam na cabeça, no coração, às voltas e voltas e teimam em não se encontrarem. Muitas vezes não precisamos de muitas. Basta uma ou duas juntas, de mãos dadas. Essas, são as que às vezes menos dizemos. Custa às vezes encontrar um desculpa. Um Enganei-me. Se uma sozinha custa a sair, fica lá atrás de uma grande pedra, a espreitar, à espera que a puxe, a chame, diga vem. Muitas vezes sai sem mais nem porquê. Daquelas vezes que não interessa muito, ou não interessa tanto. Porque se a utilizamos interessa sempre, nem que seja um bocadinho. Se esta custa a sair, há outras, que por serem mais e precisarem de outras, demoram mais a sair. E quando saem apresentam-se tarde ao serviço. Muitos autocarros depois. São as palavras: Gosto de ti. Gosto muito de ti. Gosto tanto de ti. Há ainda outras, mais VIPS, que viajam sempre em executiva. São os adoro-tes, os Amo-tes, os Fazes-me falta e o preciso de ti. Estas são as palavras que não se juntam, mas que estão lá sempre. Escondidas nas outras, as fáceis, as que deslizam por todo lado. Aquelas que flutuam e fazem com que fale até ao infinito. Mas há umas que estão na gama das que nunca digo: Ajuda-me, estou mal.
Estas são as palavras proibidas, as presas, as detidas que nem com pulseira electrónica podem circular.
São as palavras surdas, chamo-as tantas vezes. Não ouvem, não vêem e não falam. Estão enclausuradas. Não são para sair.
Um dia, vou libertá-las. Abro as grades, só para ver como se dão, quando tiverem olhos, ouvidos e boca. Quando se puderem sentar à mesa comigo. Quando estiverem comigo de mãos dadas. Um dia, leio-lhes a sentença.

29 abril 2010

Verde que te quero verde

Normalmente anda descalça na relva. É inevitável. É irrecusável. Faz lembrar a infância, a relva ao pé da casa da avó. Faz-lhe lembrar os vestidos de flores, as meias de renda. O sabor a nêsperas acabadas de apanhar. O cheiro a relva molhada é irresistível. Neste intervalo de almoço atreveu-se a sair e andar mais um pouco. Mais um pouco. Um relvado e um banco. Sentou-se no banco. Foi tirando devagar um sapato e depois o outro…os saltos já tinham um pouco de relva. Passeou por cima da relva um pé, depois outro. Finalmente levanta-se e caminha um pouco. O coração a acalmar, o sorriso da avó a voltar, as memórias a regressarem. Quase sentia o sabor a chocolate na boca. Quase sentia a calma da altura. Quase sentia. O sorriso voltou aos lábios. As mãos seguravam o cabelo. Olhou para o relógio e estava na hora de voltar para o escritório. Voltou com um sorriso, a colega que queria saber tudo disse: “Voltinha à hora de almoço? Há passarinho novo, parece-me”. E fez o que nunca tinha feito, respondeu: “Não, há relva antiga!” A colega que queria saber tudo não percebeu. Nunca iria saber que a menina Amélia tinha andado descalça na relva. Nunca iria perceber que a menina Amélia com quase 50 anos também já tinha sido mesmo mesmo menina. Já tinha tido avós. E que sabia sorrir, há muitos anos que não o fazia, mas sabia sorrir, quando as cócegas da relva lhe tocavam na alma.

10 fevereiro 2010

Brincos de princesa

eram aqueles que ela sonhava desde sempre. Eram aqueles brincos que quando era miúda pensava que as princesas tinham. Eram eles. Finalmente tinha-os na mão. Os brincos oferecidos por ele. Sempre ele. A vida toda. Um embrulho encarnado com florezinhas miúdas, um laço rosa. A caixa da Ourivesaria da rua de baixo. Abrir devagar. E eles surgem com um sorriso largo. Os brincos de princesa. Gostaste? Muito, diz ela. Eram estes os brincos. Posso sair com eles. Os meus brincos de princesa. Tudo para seres feliz. Vou já sair com eles e mostrar a todos. Os meus brincos de princesa. Desculpa a demora, disse ele. Foi o tempo suficiente para os encontrares, remata ela. Uma vida a sonhar com eles e neste dia de aniversário, o presente. Finalmente ia ser princesa para o resto da vida. Colocou os brincos e sorriu. Ele deu-lhe a mão trémula e amparou-a na rampa do lar que ia dar ao jardim. Os meus brincos de princesa vão iluminar o fim de tarde debaixo da oliveira. Parece que voltei à idade em que os vi pela primeira vez, disse ela. Ainda nem 20 anos tinha, pois não? Claro que não! Tinhas 13 e já passaram alguns anos. Diz ele. Quantos? Quarenta? Cinquenta? Setenta, afirma ele. E ela: foi o tempo suficiente para os encontrares, os meus brincos de princesa.

piloto automático

Ela que até gosta de sol nem reparava que o dia amanhecia lento e dengoso com os raios a surgirem. Há dias que nem repara se há sol ou chuva. Há dias assim. Há dias quem nem sabe o que almoçou. Há dias em piloto automático. Há demasiados dias assim.
Dias em que espera. Por alguma coisa. Não sabe o quê. Nem nunca saberá. Todos os dias em que abre o cortinado do quarto. Todos os dias que vê a rua e não vê as pessoas. Todos os dias que no autocarro, onde não há lugares sentados, não vê ninguém. Demasiados dias. Demasiadas pessoas. Demasiadas palavras. Demasiado para ela. Viveu anos em piloto automático. Anos assim, nasceram, cresceram, saíram de casa. Mudou cortinas, tapetes, quadros, toalhas, chão, pintou, lavou, escovou, cortou, cozinhou, carregou, arrumou. Em piloto automático. Em piloto automático levantava-se. Em piloto automático deitava-se. Os filhos foram feitos em piloto automático. Mas nesse dia, ao sair do autocarro, caiu. Caiu o piloto também. Viu que havia sol. Hoje há sol, disse quando se levantou e agradeceu o amparo do jovem que a ajudava. Chegou a casa e anunciou ao gato: hoje há sol. Há dias que não há sol. Hoje há sol. Foi à cozinha e não arrumou nem cozinhou, nem lavou, nem nada.
Foi ao quarto arrumou numa mala grande demasiadamente grande para toda a vida de roupa e arrumou. Dobrou. Arrumou. E quando ele chegou disse: hoje há sol nesta noite escura. Ele nem a ouviu. Procurou os chinelos. Procurou o roupão. Perguntou por eles. Ela disse estão na mala grande viagem, demasiadamente pequena para os raios perdidos de sol.