10 fevereiro 2010

Brincos de princesa

eram aqueles que ela sonhava desde sempre. Eram aqueles brincos que quando era miúda pensava que as princesas tinham. Eram eles. Finalmente tinha-os na mão. Os brincos oferecidos por ele. Sempre ele. A vida toda. Um embrulho encarnado com florezinhas miúdas, um laço rosa. A caixa da Ourivesaria da rua de baixo. Abrir devagar. E eles surgem com um sorriso largo. Os brincos de princesa. Gostaste? Muito, diz ela. Eram estes os brincos. Posso sair com eles. Os meus brincos de princesa. Tudo para seres feliz. Vou já sair com eles e mostrar a todos. Os meus brincos de princesa. Desculpa a demora, disse ele. Foi o tempo suficiente para os encontrares, remata ela. Uma vida a sonhar com eles e neste dia de aniversário, o presente. Finalmente ia ser princesa para o resto da vida. Colocou os brincos e sorriu. Ele deu-lhe a mão trémula e amparou-a na rampa do lar que ia dar ao jardim. Os meus brincos de princesa vão iluminar o fim de tarde debaixo da oliveira. Parece que voltei à idade em que os vi pela primeira vez, disse ela. Ainda nem 20 anos tinha, pois não? Claro que não! Tinhas 13 e já passaram alguns anos. Diz ele. Quantos? Quarenta? Cinquenta? Setenta, afirma ele. E ela: foi o tempo suficiente para os encontrares, os meus brincos de princesa.

piloto automático

Ela que até gosta de sol nem reparava que o dia amanhecia lento e dengoso com os raios a surgirem. Há dias que nem repara se há sol ou chuva. Há dias assim. Há dias quem nem sabe o que almoçou. Há dias em piloto automático. Há demasiados dias assim.
Dias em que espera. Por alguma coisa. Não sabe o quê. Nem nunca saberá. Todos os dias em que abre o cortinado do quarto. Todos os dias que vê a rua e não vê as pessoas. Todos os dias que no autocarro, onde não há lugares sentados, não vê ninguém. Demasiados dias. Demasiadas pessoas. Demasiadas palavras. Demasiado para ela. Viveu anos em piloto automático. Anos assim, nasceram, cresceram, saíram de casa. Mudou cortinas, tapetes, quadros, toalhas, chão, pintou, lavou, escovou, cortou, cozinhou, carregou, arrumou. Em piloto automático. Em piloto automático levantava-se. Em piloto automático deitava-se. Os filhos foram feitos em piloto automático. Mas nesse dia, ao sair do autocarro, caiu. Caiu o piloto também. Viu que havia sol. Hoje há sol, disse quando se levantou e agradeceu o amparo do jovem que a ajudava. Chegou a casa e anunciou ao gato: hoje há sol. Há dias que não há sol. Hoje há sol. Foi à cozinha e não arrumou nem cozinhou, nem lavou, nem nada.
Foi ao quarto arrumou numa mala grande demasiadamente grande para toda a vida de roupa e arrumou. Dobrou. Arrumou. E quando ele chegou disse: hoje há sol nesta noite escura. Ele nem a ouviu. Procurou os chinelos. Procurou o roupão. Perguntou por eles. Ela disse estão na mala grande viagem, demasiadamente pequena para os raios perdidos de sol.