17 agosto 2005

Em 2001 escrevi o texto que se segue...é um de muitos a que resolvi chamar A-Deus.


Lisboa

Depois de navegar pelas ruas libertas de gente, sentou-se num banco de jardim.
Sabia que tinha chegado a altura de descansar, respirar e olhar para outra coisa que não ela própria.
Às vezes cansava-se dela, dos eternos problemas, que tantas vezes nem o eram, mas de tanto pensar acabavam por se transformar em questões intransponíveis. Talvez, tudo isso, se devesse ao facto de não ter ninguém que realmente merecesse a sua confiança. Não, que ideia, ela não tinha era ninguém com quem conversar.
É isto que mais a irrita, o facto de se enganar a ela própria. E se nem ela própria se suportava, como é que podia abrir-se para os outros? Seria completamente ignorada. Novamente o engano próprio: agora também és totalmente ignorada, não tens gente que viva contigo, que jante num sábado, que almoce num domingo; que vá ao cinema contigo; que te ofereça uma prenda no dia de natal ou no dia de anos.

Levantou-se do banco velho de jardim e inclinou-se sob a poça de água. Viu o seu rosto distorcido e soltou uma gargalhada, era mesmo assim por dentro: feia, velha e desfocada. Suspirou fundo e entrou no prédio pombalino que habitava. Devagar e num silêncio absoluto mergulhou na casa. No quarto ao fundo viu os dois filhos que dormiam. Eram parecidos com o pai, pensou. Na sala o cão repousava no sofá, e claro que nem abanou o rabo quando a fitou. Na enorme cama de casal, o marido dormia.
Ninguém tinha dado pela sua falta, a não ser, provavelmente, o amontoado de louça que estava à espera dos seus braços para que ficasse lavada. Realmente, ela era a sombra de todos os dias naquela casa. Ninguém notou a sua falta. Suspirou mais uma vez e foi tomar um duche.
Quando a água fria lhe acariciava a cara, sorriu, sentia-se feliz, depois de muito tempo.
Pegou na lâmina do marido, abriu as veias, e disse finalmente: A-Deus.

1 comentário:

Anónimo disse...

Este é muito bom

O critico

PS- já voltei a criticar